quarta-feira, 26 de março de 2008

O ADMINISTRADOR INFIEL - TEOR DA PARÁBOLA


(Lc 16, 1-9)


Jesus contou aos seus discípulos a estória de um homem
administrador de grande fazenda, em que se cultivavam cereais e
oliveiras. O respectivo proprietário vivia na cidade distante, de modo
que delegava amplos poderes ao seu ecônomo: tratava com os
colonos e clientes do seu patrão; alugava, vendia e comprava a seu
bel-prazer.
Um dia o procurador foi chamado ao escritório do seu patrão, que
lhe disse secamente: "Chegaram-me aos ouvidos péssimas
referências a teu respeito: tens esbanjado os meus bens. Presta
contas da tua administração, pois estás intimado a sair do cargo". Isto
se entende desde que se leve em conta que os orientais não
conheciam o controle regular das finanças.
Verifica-se que o administrador era, sim, desonesto, mas também
leviano; levava vida fácil e alegre, jogando com os bens de que
dispunha cada dia, sem mesmo se preocupar com o amanhã ou com
o seu próprio enriquecimento. Era o homem "não sábio", insensato,
que, ao ser demitido, se viu dolorosamente embaraçado: nada tinha
para garantir o seu futuro, pois simplesmente dilapidava os bens do
patrão. Levou, pois, um grande susto!
Pôs-se então a monologar consigo mesmo: não se desculpava,
mas reconhecia a sua culpa. Que faria doravante? Cavaria a terra?
Mendigaria? Nem uma coisa nem outra; o procurador, que fizera as
vezes de senhor de boa categoria social, tinha vergonha; ademais,
para cavar a terra, faltavam-lhe as forças e o hábito; quanto a
mendigar, parecia-lhe duplamente vergonhoso, depois de uma vida
abastada; com efeito, os judeus consideravam a mendicância como
castigo de Deus; ver Eclo 40,28s: "Filho, não vivas mendigando: é
melhor morrer do que mendigar. Ao homem que olha para a mesa
alheia, a vida não deve ser contada como vida".

De repente, o procurador descobriu um artifício astuto para se livrar das dificuldades. Chamaria cada um dos devedores do patrão e
diminuiria a sua dívida; quem aceitasse tão vantajosa negociata,
ficaria depois obrigado a receber em sua casa o administrador
demitido e carente de apoio. Assim o desonesto ecônomo aproveitou
os últimos dias de sua gestão não para devolver o que roubara, mas
para roubar mais ainda, só que, dessa vez, com proveito para si, com
previdência, com esperteza, ele que sempre roubara com leviandade
e futilidade. Compreende-se que os credores tenham aceito prontamente a "interessante" proposta do administrador, sem pensar
talvez nas obrigações que contraíam para com ele num futuro
próximo. Notemos, aliás, o estilo do diálogo do ecônomo com os
devedores: começa pela pergunta: "Quanto deves ao meu senhor?",
pergunta retórica, pois o administrador devia saber o montante; a
questão, porém, era válida para recordar ao devedor a importância
da sua dívida; reconheceria melhor o vulto do favor que lhe era prestado
pelo ecônomo astuto.Há quem explique de outro modo a negociata de
16,5-7: segundo o costume, tolerado na Palestina naquela época,
dizem, o administrador tinha o direito de conceder empréstimo com os
bens do seu senhor. E, como não era remunerado, ele se indenizava
aumentando, no recibo, a importância dos empréstimos. Assim na
hora do reembolso ficava com a diferença como se fosse seu
honorário ou seu juro. No caso da parábola, portanto, ele não havia
emprestado senão cinqüenta barris de óleo e oitenta medidas de trigo.
Colocando no recibo a quantia real, ele apenas estava se privando do
benefício que lhe tocaria segundo o costume vigente. Sua
desonestidade, portanto, não consistiria na redução de dívidas
devidas ao patrão, mas nas ações fraudulentas anteriores que
provocaram a sua demissão.

Este modo de entender o comportamento do administrador parece
um tanto artificial e arbitrário; pode-se perguntar: onde é que o texto
evangélico o fundamenta...? Mais lógica e óbvia parece-nos ser a
clássica interpretação: o administrador negociou desonestamente com
o dinheiro do patrão até o último dia da sua gestão.

O proprietário dispensou o procurador. Tomou então consciência
da fraude astuta; mas já era tarde para invalidá-la. Por isto, embora
sofresse o dissabor da lesão, ainda quis reconhecer a esperteza ou
habilidade do ladrão; não fora um ladrão bobo... "O senhor louvou o
administrador desonesto por ter agido com prudência" (v. 8a). "O
senhor", no caso, não é Jesus, mas o patrão lesado, que reconheceu
a fraude com espírito de humor.
Jesus, porém, acrescentou:"... pois os filhos deste século são
mais prudentes com a sua geração do que os filhos da luz" (v. 8b).
Que significa isto?

"Os filhos deste século" é expressão semita equivalente a "homens absorvidos pêlos interesses materiais ou temporais".

Estão em contraste com "os filhos da luz", sinônimo de "filhos de
Deus" (cf.1Jo 1,5), homens voltados para a prática do bem e da
honestidade. "Mais prudentes" quer dizer: "mais espertos, hábeis,
conscientes"; "com sua geração", isto é, com seus semelhantes. — As
palavras de Jesus exprimem um fato que até hoje se verifica: os maus
são mais finórios e sagazes na promoção dos seus interesses maus
ou meramente materiais do que os bons no serviço dos verdadeiros
valores e do próprio Deus. Já dizia Pio XII que o grande escândalo
dos nossos tempos é que os bons "estão cansados", ao passo que os
maus trabalham muito; pode parecer que a procura dos bens
materiais empolga mais os pecadores do que a procura dos bens
espirituais empolga os justos; os maus têm mais zelo pelo que é mau,
do que os bons pelo que é bom. Exemplo disto seria o administrador
desonesto que soube encontrar hábeis recursos para se manter
impune na fraude até o fim; seria para desejar que os bons o
imitassem na promoção do bem; "Aqueles correm em demanda de
uma coroa perecível; nós em demanda da imperecível", diz São Paulo
(1Cor 9,26). É bem de notar que Jesus não manda cometer o mal,
mas sim praticar o bem, todavia com o interesse e o empenho que os
maus aplicam para a promoção do mal. Lembremo-nos de que,
paralelamente, Jesus exorta os seus discípulos a ser hábeis como as
serpentes (cf. Mt 10,16).

Segundo alguns comentadores, a parábola termina no v.8. Cremos, porém, que o v.9 a integra como conclusão tirada por Jesus:
"E eu vos digo: fazei amigos com o dinheiro da iniqüidade, a fim de
que, no dia em que faltar, eles vos recebam nas tendas eternas". Esta
frase, aparentemente misteriosa, quer dizer o seguinte:

"Dinheiro da iniqüidade" é expressão semita que designa o
dinheiro como tal,... dinheiro que em si é algo de neutro (moralmente,
nem bom nem mau), mas que muitas vezes é iniqüamente utilizado
pelos homens; daí dizer-se "dinheiro iníquo" (1). Jesus faz do dinheiro
um símbolo dos bens ou talentos que cada um de nós possui (tempo,
saúde, dotes pessoais...); e exorta-nos a que, com esses bens,
pratiquemos obras boas (Vaçamos amigos") que nos mereçam o
ingresso na vida eterna ("tendas eternas")(2) . Sejamos tão zelosos
quanto os filhos das trevas, para realizar o bem enquanto é tempo, ou
enquanto a graça de Deus nos possibilita preparar nossa vida
definitiva; temos aqui um convite para acumular tesouros no céu, seja
por meio da esmola, seja mediante outras obras boas; ver Lc 12,33;
18,22.
(1)O texto grego diz 'mamona da iniqüidade*. Mamona vem da raiz aramaica mn (-aquilo em que se pode confiar, ou que ó seguro). Entra os judeus, significa posses ou propriedades, não raro em sentido pejorativo.
(2)"Habitar em tendas* é uma imagem que designa a mansão de Deus ou, sem metáfora, a bem-aventurança final; ver Mc 9,5; At 15,16; Ap 7,15; 21,3.


Os rabinos costumavam dizer que as boas obras são nossos intercessores: "Aquele que cumpre um mandamento, adquire para si um intercessor" (R Abn. 4,11).
"Donde vem que as esmolas e as obras de caridade sejam um grande intercessor? * (Tos. Pea 4,21).
Procuremos agora definir claramente os ensinamentos da parábola.

Lição 2: A interpretação da parábola
A parábola do administrador iníquo, que freqüentemente causa dificuldades aos intérpretes, é portadora de profundos ensinamentos.
Devemos observar, antes do mais, que é uma parábola a contraste..., parábola em que o Senhor propõe uma imagem negativa, hedionda, que, por contraste, significa algo de positivo e muito belo. Assemelha-se ao negativo de uma fotografia, que deve ser revelada, de tal modo que os respectivos traços pretos se tornarão brancos. Há outras parábolas deste gênero no Evangelho: em Lc 18,1-8 o juiz cínico é figura, por contraste, do Senhor Deus (que é o contrário do cinismo); em Lc 11,5-8 o amigo comodista é símbolo do próprio Deus (o Amigo que primeiro nos amou; cf. 1Jo 4,19); em Lc 11,11-13 o pai da terra, deficiente como é, simboliza o Pai do céu (que é perfeito). — No caso de Lc 18,1-9 Jesus propõe um homem que é fraudulento e leviano, fútil; um dia leva um susto, que o obriga a pensar sobre o sentido da vida; converte-se então, nos poucos dias que lhe restam, da futilidade e insensatez para a sabedoria e habilidade, sem porém deixar de ser desonesto. Com outras palavras: temos a história da fraudulência leviana que se converte em fraudulência atenta e sábia, em conseqüência de um susto que ainda lhe deixou poucos dias para se converter. Ora Jesus nos diz que essa estória ó imagem do que nós devemos fazer, nós que queremos ser filhos da luz e não filhos das trevas. Propensos à superficialidade e à rotina de vida, saibamos aproveitar os sustos que a Providência permite em nossa existência a fim de nos convertermos à sabedoria, sensatez e profundidade do coração.
Eis o esquema correspondente:
1) Filho deste mundo

Fraudulência insensata susto Fraudulência sensata
Prazo

2) Filho da Luz

Cristãos levianos susto cristãos mais sábios
Prazo

Mais precisamente formulemos as seguintes conclusões:






A parábola do administrador iníquo está na linha das do rico
proprietário de Lc 12,16-21, e do ricaço de Lc 16,19-31: ensina-nos a
olhar os bens deste mundo com sabedoria, isto é, a partir da
eternidade ou à luz do definitivo, a fim de não sermos surpreendidos
pela morte. Acrescenta, porém, às anteriores um elemento novo. Após
o susto ou a desinstalação, ainda há um prazo para a conversão e o
recomeço: Deus é paciente e misericordioso; antes de aplicar a justiça
definitiva, Ele concede oportunidades de emenda.
Assim a parábola vem a ser uma exortação à conversão (a sua tônica
está neste traço)..., conversão não tanto do pecado grave para a
virtude, mas sim da virtude levianamente praticada para a virtude
exercida com pleno fervor. O fervor heróico pode tomar aspectos
diversos no decorrer da história do Cristianismo. Eis a propósito, dos
Padres do deserto (século IV):
Certa vez um grupo de jovens monges foi procurar o abade Isquirião
no deserto para pedir-lhe orientação. Após narrar o seu modo de vida
austera (jejuns, vigílias, trabalho manual...), perguntaram-lhe: "Quanto
vale a nossa vida?" Respondeu o ancião: "Vale a metade daquilo que
nossos Pais fizeram". Muito surpresos, indagaram os jovens: "E
aqueles que virão depois de nós, quanto valerão?" Disse Isquirião: "
Farão a metade do que nós fazemos". Mais atônitos, ainda
perguntaram os jovens: "E aqueles que virão depois desses, que
farão?" Respondeu o abade: "Farão menos ainda do que os
anteriores, mas sobrevirá a eles uma grande tempestade, e os que

permanecerem fiéis naquele tempo, serão maiores do que nós e os
nossos pais".

Esta despretensiosa profecia vem-se cumprindo. Com efeito; é
cada vez mais atenuada em nossos dias a prática de ascese corporal
rigorosa (talvez em virtude da agitação da vida e do enfraquecimento
das saúdes), mas nem por isto os cristãos contemporâneos estão
condenados à mediocridade; a Providência lhes oferece a
oportunidade de ser constantemente sacudidos e solicitados para uma
vida sábia, consciente e plena mediante a tempestade de propostas
filosóficas dentro e fora da Igreja; levam a procurar "atenuar" ou
"humanizar* as exigências da fé; quem lhes resiste, mobiliza
constantemente suas energias espirituais e sacode a rotina...

2) A parábola nos ensina, como outras já estudadas, a aproveitar
os bens que temos, não necessariamente o dinheiro, mas outros dons
de Deus... enquanto é tempo, enquanto somos peregrinos à luz desta
vida terrestre. "Hoje, Oxalá ouçais a sua voz... Não endureçais vossos
corações,... como vossos pais, que me tentaram, embora tivessem
visto as minhas obras" (SI 94,7-9). Não sabemos quantas vezes ainda
diremos "Hoje...". Daí a premência de aproveitar o presente.
3) Saibamos tirar proveito também dos sustos e reveses desta vida ou... até mesmo do pecado. Deus pode permitir o pecado para
que despertemos da inconsciência para um comportamento mais
definido e coerente. Tudo é graça no plano de Deus; tudo pode servir
à nossa salvação.
4) O grande mal que pode acometer um cristão é a mediocridade de vida, é a acomodação sem dinamismo. Para Deus, só pode haver
uma resposta condigna: doar-se totalmente, sem regateios. Diz o
Senhor: "Conheço a tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá
fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, nem frio nem quente,
estou para te vomitar de minha boca" (Ap 3,15s). O desfibramento da
vida cristã, que por si é extremamente dinâmica, é que causa a
perplexidade e a indiferença do mundo ateu. "Vós sois o sal da
terra...", diz o Senhor (Mt 5,13).

Nenhum comentário:

Powered By Blogger